Há chuva no chão, e aquele cheiro a terra molhada que parece que abafa as narinas, fortíssimo como guerreiros bárbaros, que parece que alarga as respirações à força de humidade, à força de lama alagada e cheiro a água na terra, remexida e revolta, pingando como ponteiros de relógio, daqueles de pêndulo verticais em salas de avó, antigas e enxutas de memórias, memórias em forma de cheiros e de odores, em forma de timbres de voz e fotogramas no vapor da memória, no vapor, em forma de caras e rostos, e frases e sons, e olhares e sorrisos, e lágrimas e segredos,
- segredos muitos -
, no sopro daquelas noites em que a solidão tilinta nos ouvidos, chocalha nas paredes do limite, os sons embutidos no escuro da noite, os cheiros zumbindo testa acima, e a chuva no chão da alma a pingar, gota a gota, a pingar, como a sala bolorenta do que já foi, na casa de avó do que já foi, no escuro de uma noite qualquer em que, embebido num cheiro qualquer, num qualquer, entre tantos outros, um qualquer, nos odores forjados em palavras chicoteando dentro de nós, palavras,
- Gent,
, e a chuva a bater no chão, as bicicletas no amarelo pálido do que já foi, das ruas sombrias de névoa do que já foi, mais chuva, cachecóis e luvas, e frio, ainda mais chuva, a água a começar a misturar-se com a terra, e o cheiro, desmedido opressor, bravo cruel, o odor a alargar as respirações com a força do orvalho, a terra remexida como memórias de um passado tão presente, presente, como o ontem que o amanhã não esquece,
- Porquê?
, e a chuva a bater na terra, a lama, outra vez cachecóis e luvas, pedra e casas aos ladrilhos rectangulares encarnados e com o telhado em escadinha, pedra, três torres que se erguem na névoa que nasce do peito, bem dentro, no peito,
- Porquê?
, mais frio, ainda mais chuva, e o pêndulo de relógio numa sala qualquer onde o passado já foi começa a parar, esmorece e subitamente a chuva para, o frio aquece, a terra seca e parece já não abafar as narinas nem alargar as respirações com força nenhuma, nenhuma, nenhuma, mas o cheiro a terra molhada vai ficar, vai ficar mesmo que alguém me grite ao ouvido com a força das garras ocultas,
- Chegou o Fim,
, mesmo que alguém me diga que já não chove, para mim a terra cheirará a molhada como dantes, como dantes.

jtf, sete de fevereiro de dois mil e sete, gent, bélgica
leuven
amsterdam